operária

esculpida pelo bate-estaca das horas
sofrida, ressequida, nunca ressentida
desfia os dias, desafia o tempo
:
e tece as próprias histórias de amor

- Bianca Velloso -

centelha

o sonho invade a pele
rubor de metáforas
metafísica
metalinguagem
meta inexata
um aponte
uma ponta
uma ponte
:
a língua

sobre o iceberg nasce uma flor

- Bianca Velloso -

a casa

a casa que em mim habita
tem um quintal cheio de primos
tem cheiro de churrasco
e barulho de máquina de costura

a casa que em mim habita
tem samambaias e risadas
tem esconde-esconde e pega-pega
e os mistérios do quarto de uma bisa bugra

a casa que em mim habita
tem joelho ralado de traquinagem
e as broncas de um avô duro e doce

a casa que em mim habita
tem tatu bola e maria-sem-vergonha
e é confeitada com pedaços de memória


- Bianca Velloso -

mulheridades

Imagem: Nu Feminino (mulher barriguda) - tela de Archimedes José da Silva

de sul a norte
na cartografia do corpo
habitada por lumes

que vagam amiúde de luas
vazantes marés

revirando os dias
uivando cios
varando o gozo
subvertendo e sangrando regras
sagrando-se no profanar da lida
da lira, da linha, da vida

primavera no ventre
se é enchente, com licença
aí vem gente

- Bianca Velloso -

auto gestação

Em resposta ao 114º Desafio Poéteco com Imagens de TaniaContreiras Arteterapeuta

Imagem: Arthur Berzinsh

ah! este maldito casco
cansado e maltratado
por ser o que não é
mas não tenhas medo, pequena
te abrigo em meu umbigo
te gestarei o tempo que for preciso
...
então nascerás
então nascerei
:
Mulher

- Bianca Velloso -

a liberdade

esse bichinho acuado
exposto na jaula de um zoo
chamado feicibuqui

- Bianca Velloso -

akira

(para Akira Yamasaki)

a poesia do Akira

me            e s t r a ç a l h a

é meu espelho

leio e me despedaço

ali me vejo

corpo descalço

alma desarmada

a poesia do Akira

dói e pulsa em mim

leio e me desmancho

em lágrimas ácidas

que escorrem pela face

e abrem em meu peito

uma senda de ternura

- Bianca Velloso -

alguma coisa

(para Akira Yamasaki)

alguma coisa

me irmana

ao compadre Akira

...

alguma coisa

que não é o sangue

...

alguma coisa

que nem sei bem o que é

:

talvez seja esta trilha

caminhar pelo descaminho

aceitar o sonho

que o destino

(ou o desatino)

coloca em nossas mãos

acolher as escolhas

colhidas na lida

do dia-a-dia

- Bianca Velloso -

leis de mercado

não foi de uma vez só
foi pouco a pouco
...
ela era tão viva
tão bonita
tão autêntica
...
espalhava por aí
abraços, carícias
sonhos, cores,
beijos, fantasias
e possibilidades
...
não suportavam
vê-la tão leve, tão solta
tão cheia de amor
...
no primeiro dia
cortaram-lhe as asas
...
no segundo
arrancaram-lhe as cordas vocais
...
no terceiro
quebraram seus braços e pernas
...
no quarto
perfuraram-lhe os tímpanos
...
no quinto
furaram-lhe os olhos
...
no sexto
invadiram seu território
mais íntimo e mais sagrado
:
o sexo
...
no sétimo descansaram

agora é tarde
a liberdade está morta

- Bianca Velloso -

segunda-feira

Imagem:  tela de Sandra Regina Marcos Costa

depois da morte
(a pequena)
escondo teu cheiro
em meu cabelo
e mostro teu gosto
no meu pescoço
o sorriso não nega
...
monto numa rajada
de vento
pedaço de temporal
de amor
:
e vou para o trabalho

- Bianca Velloso -

expressionante

Imagem: pintura de Monet - Impressão: o sol nascente

o verso
esta impressionante
imprescindível
imprevisível
improvável
e imprecisa
forma
de expressão
...
quantos impropérios
cabem dentro
de um poema
:
extravagante
extravazante
vagar de poesia

- Bianca Velloso -

pulsar

sentia repulsa
àquele homem
que lhe amava
sem consentimento
o ódio lhe pulsava
...
cerrou o punho
cravou-lhe no peito
um punhal
:
depois recompôs-se
e saiu
para a missa de domingo

- Bianca Velloso e Luca Bastos -

Cedo

Fotografia: Francis Diógenes

Cedo
se dando

Cedo
e a sede se dá

Cedo
e a sede não cede

Cedo
e a sede não seda

- Bianca Velloso - 

ribanceira abaixo

Em resposta ao 112º desafio poético com imagens de Tania Contreiras Arteterapeuta

Imagem: Ben Goossens

rolei
nuvem de estrada
poeira de sol
ventania de mar
:
pé na tábua
parti
...
só deixei meu coração

- Bianca Velloso -

diálogos poéticos

pardo perdão, parça??
pedi
e perdi

(Paulo Paterniani)


perdeu, parça

teu parco perdão
não paga o preço
dos meus pardos
percalços
:
pardal já voou

(Bianca Velloso)

estrada

Fotografia: Suzana Pires

é no descaminho
que se sossega
é no desassosego
que se caminha

e é a poesia
o que nos conduz
:
o que nos embriaga os passos
...
e nos acorda os sentidos

- Bianca Velloso -

rebanho

tal qual criador
tratando suas reses
alimento os sonhos
que nalgum dia
me alimentarão

- Bianca Velloso -

alvoroço

miro aquele rosto
:
no espelho
...
parece triste
...
um poema mal comido
um amor mal dormido
uma voracidade pela vida
um desejo de metáforas
uma urgência de prazer
uma vontade de
desacelerar o planeta
e plantar música
nos olhos do mundo

- Bianca Velloso - 

espaço

o amor
...
e este andor
...
e este ardor
...
e também a dor
...
e também além
...
e todas
:
todas as coisas de dentro e de fora
...
do mundo
...
e as coisas do além
...
o tudo e o nada
...
tudo é questão de espaço
...
o amor é um lugar
...
e é lá que eu quero morar
:
dentro do teu quarto
dentro do teu quadro
dentro do teu corpo
dentro do teu olho
...
e além

- Bianca Velloso -

construção

com a respiração ofegante
tropeçando e tornando a levantar
...
parecia uma fuga
:
é, acho que a gente fugia

a gente fugia da realidade
e também da fantasia

a gente corria
:
no meio do mato
a gente corria

a gente fugia
mas não se escondia

as roupas iam caindo
no meio da estrada
no meio do nada

até que no meio da praça
a gente estava nua

e com os olhos cheios
de metáforas
a gente não mais fugia
:
a gente ria
a gente se dava as mãos
e construir outra realidade
agora a gente podia

- Bianca Velloso -

erosão

teus silêncios me corroem
em culpas, mágoas e desculpas

e são tantos os sentimentos misturados
a janela para o meu medo de envelhecer

a lembrança do brigadeiro
mais gostoso que eu comi

meu presente, meu passado, meu futuro
a despedida  que vai, que volta, que fica
a ligação entre o que fui,
o que sou, o que serei
e o que seria se não fosse tu

tuas tristezas e tuas alegrias

os meus passos quando te encontro
gemem com a angústia de chegar e de partir

- Bianca Velloso -

pró cura

porque já era dia
mas o sonho
te prendia
e na noite escura
te perdias

porque já era dia
e porque te escondias
a moça na janela
te procurava e não te via
mas no silenciar da praça
no sopro da poesia
no contra canto da melodia
completamente louca
completamente rouca
completamente pouca
ela te ouvia

mas tu não percebias

- Bianca Velloso -

Veracidade

a verdade não é

tão homogênea assim

a verdade é dialética

a verdade está prenha

de múltiplas verdadezinhas

e também de muitas mentirinhas

na verdade

a verdade é

um grande quebra-cabeça

- Bianca Velloso -

fanatismo

111º Desafio Poético com Imagens de Tania Contreiras
Arte: Pamela B. Chávez

era um anjo
mas porque
eram tão cegos
enxergaram o demo
arrancaram-lhe a asa
beberam-lhe o sangue
e nem perceberam

- Bianca Velloso -

montaria

no galope do tempo
nas entranhas da rua
nas crinas da lua
nas crias da noite
nas estrelas do dia
nas estranhas
entradas do mundo
em todas as estradas
da via láctea
sigo montada
nos cavalos marinhos
que habitam o olhar

- Bianca Velloso -

mapeamento

ando e dirijo
sozinha
pelas ruas
de Porto Alegre

pra me perder
e me encontrar
na cidade
onde nasci

percebo
que aquele mapa
está escrito
em minha pele

- Bianca Velloso -

o verso

este elemento diverso
espelho de espanto
óvulo de lucidez
esperma de embriaguez
embrião de tempestade

- Bianca Velloso -

Leila

nas tuas mãos
o sagrado e o profano
o corpo e a alma
o mistério do mundo
e os segredos do corpo

em tuas mãos a mistura
e a possibilidade
:
de ser

- Bianca Velloso -