Meu caderno hoje estava igual ao do menino maluquinho: uma lição e um versinho a mãe disse que eu não estava prestando atenção mas minha desatenção é apenas o meu jeito de resistir à razão!
- Bianca Velloso - estudante da Pós Graduação em Optometria Comportamental
Na praça da Palhoça existe uma mina! No intervalo do almoço, uma força de imã atraiu-me para lá... E encontrei um tesouro: um livro chamado "De todas as únicas maneiras & outras":
"NUVENS
Pela janela, as nuvens faziam desenhos impossíveis. Brincando de esconder a lua, tecendo cores raras, noturnas.
Fugindo umas das outras, se aproximando, numa dança suave e muda, unindo-se até virarem céu ou dispersas, esparsas, desfazendo chuvas.
O tempo que derrama as folhas sobre as pedras do quintal não é o mesmo que se mede em nuvens.
A lua: às vezes oculta."
O texto feito assim sem nexo, sem sentido, apenas para bagunçar a razão e reorganizar os sentimentos! Como penso que deve ser mesmo um poema... O texto tocou-me profundamente. Procurei no livro informações sobre o autor, "Jorge Viveiros de Castro". Nada encontrei sobre sua trajetória, sua história, sua obra, sua vida... Nada! Isso tocou-me ainda mais... Não resisti... Comprei o livro! Uma fortuna: cinco reais!
- Mãe, quando tu morreres, queres ser cremada ou enterrada?
Sempre pensei que depois de morta não faria diferença ser cremada ou enterrada, mas quando a pergunta veio dela percebi que nunca havia parado pra pensar de verdade sobre o assunto...
- Tanto faz... Depois de morta não faz diferença nenhuma... - respondi e me arrependi na mesma hora!
Ficamos nos olhando por um momento. Não sei o que ela pensava, mas eu tentava imaginar o que se passava naquela cabecinha, sem coragem de perguntar nada.
- Pensando melhor, acho que quero ser cremada, filha...
- Por quê, mãe?
- Para que não te sintas na obrigação de ficar visitando um corpo que se decompõe no cemitério...
- Mas eu já estou acostumada a ir ao cemitério! Minha Vó Vivi tá enterrada lá...
- Ah, sei lá, filha... Mas eu não acho legal, não acho que cemitério tenha uma energia boa... Se a gente fosse só pra baixo da terra tudo bem, virava adubo pra fazer crescer as plantinhas... Mas fica lá num espaço que... Acho que é melhor ser cremada mesmo... Depois tu jogas minhas cinzas de um lugar bem alto e bem bonito para que eu possa voar e voltar pra natureza!
Pensei na mercantilização da morte e da dor... Seria bom ter nascido índia... Ou em qualquer outra
cultura em que a dor pode ser vivida até o fim, sem que ninguém faça
dela um negócio lucrativo... Neste "mundo civilizado" morrer é
caríssimo! Enterrando ou cremando, não importa, é tudo muito caro... Nos roubaram até o direito de morrer! Que triste! Que doído! Mas não era sobre isso nossa conversa... Docemente ela concluiu:
- Tá bom, mãe, eu vou fazer tua cremação num dia em que o céu esteja todo cor-de-rosa, bem lindo!
Chego à conclusão de que estou
ficando cada vez mais louca. E confesso que adoro minha loucura. Quanto mais louca fico, mais me encontro. Tenho gostado da minha própria companhia. E quanto
mais gosto da minha própria companhia, mais aberta fico para o coletivo. E se alguém discorda das ideias que brotam da loucura, as discordâncias (que são bem diferentes de discórdias) se transformam em alimento para a escrita.
Saí cedo para a labuta de
sábado. Uma hora de viagem para chegar ao trabalho. Catei um cd na estante, liguei o som do carro e parti. Foi uma música do cd escolhido que, naquele
momento, despertou a loucura que alivia a dor da existência. A música é dolorida,
mas a dor também abre o caminho para que a fantasia preencha a alma:
O Velho Ateu (Eduardo Gudin / Roberto Riiberti)
Um velho ateu
Um bêbado
cantor
Poeta
Na madrugada
cantava essa canção seresta
Se eu fosse
deus
A vida bem que
melhorava
Se eu fosse
deus
Daria aos que
não têm nada
E toda janela fechava
Pros versos
que aquele poeta cantava
Talvez por
medo das palavras
De um velho de
mãos desarmadas
A imagem das janelas se fechando
para a poesia foi muito forte para mim... A imagem do medo das ideias de quem
pensa diferente... Me doeu a dor do poeta. Não tenho religião, mas adoro pensar
sobre a existência de Deus. Abri minha janela e acolhi o poeta. Depois abri também a porta, engatei meu braço no dele e saímos dançando pela manhã que, de repente, virou madrugada. Sentamos na calçada, com um copinho de pinga e uma cerveja até a madrugada se confundir com a própria vida naquela conversa-voo:
Não acreditas em Deus, Poeta? O que ou quem é Deus? Há
quem diga que foi Deus quem criou a humanidade... Também há quem diga que foram
os homens que criaram Deus... Penso que não dá para negar a existência de Deus,
mas não cabe no meu pensamento (nem no meu coração) o Deus construído dentro das religiões hegemônicas no Brasil. Nos meus sonhos de poeta desvairada, Deus não é pai nem
mãe, não é feminino nem masculino, não tem forma, mas no universo da poesia pode ter
cor e cheiro... Deus é a energia vital de amor que circula no universo... É a melhor energia que existe por aí, no ar e dentro dos seres vivos... Creio que tanto esta energia é produto da humanidade, quanto a humanidade é produto desta energia.
Sabe aquela história "do pó viemos e ao pó voltaremos" e da tal "vida eterna"? Energia pura, essência em forma de poesia...
A gente nasce dessa energia, a vida principia num poema absurdo e concreto, cujo
ápice é o ato sexual... E quando a gente
morre - um outro poema - o que fica é energia que alguns chamam de espírito: o que se amou, o que se lutou, os gestos de
carinho... Seja debaixo da terra, seja no mar ou em forma de cinzas, a
energia que fica continua a influenciar a vida...
Também já me fecharam as janelas, caro Poeta... Puro medo... Medo da minha loucura, medo da minha fantasia... Medo do caminho de liberdade que existe dentro do pensamento... É mais fácil ser escravo do que ser livre! Nem todo mundo sabe voar! Tenho pena deles, que não percebem que tudo é poesia!
As religiões não são ruins, meu amigo, elas também transformam essência em poesia... As parábolas são poemas... Há quem goste, há quem não entenda, eu sempre gostei de versos livres e gosto de poesia que liberta... Às vezes as Igrejas usam a poesia para colonizar mentes e corações... Algumas correntes religiosas até ajudam no processo de libertação e rompimento com o sistema, acho louvável e respeito imensamente, mas minha fome de liberdade é ainda maior, quero sonhar meus próprios deuses, quero ligar-me a esta essência através da arte, do amor, da diversidade, da pluralidade!
Tu não estás sozinho! E nem eu! Tu com as tuas ideias e eu com as minhas podemos sim compartilhar carinho! Qualquer hora a gente se encontra de novo, nas esquinas da fantasia...
Despedi-me com um abraço apertado e um beijo no rosto. A madrugada virou manhã novamente. Acordei do sonho que sonhava acordada, desliguei o motor do carro e fui trabalhar com a alma repleta de poesia.
"Muitas doenças da alma decorrem do fato de que nos levamos a sério. Os demôios são sérios e graves. Deus é leve e ri. 'O riso é o início da oração' (R. Niebuhr)." - Rubem Alves
Houve um tempo em que eu não ria, tinha desaprendido, andava triste, cabisbaixa, não acreditava na beleza... Cheguei mesmo a pensar que o melhor era deixar de ser... Apesar de estar de mal com a vida, nunca deixei de amar as pessoas: a família e os amigos foram fundamentais neste processo de luta contra a depressão. Quando já estava levantando do torpor e reaprendendo o riso, ganhei, de uma amiga, um rosário trazido lá da terra de Madre Paulina.
Não acredito nas religiões industrializadas e muito menos nas igrejas. Gosto de sonhar meu próprio Deus, inventar minha religião e meus rituais. Tenho minha maneira de conectar-me à energia divina: um banho de mar, uma caminhada... Fechar os olhos, sentir as batidas do coração, tirar os pés do chão, visualizar o universo, chegar até uma estrela, imaginar que a luz retorna a quem precisa... Existem alguns estudos sobre a etimologia da palavra religião, um deles diz que significa religação, algo como religar-se à própria essência, ao que é sagrado e divino.
Apesar de não acreditar nas instituições religiosas, não duvido da fé, ainda mais quando nos chega com gestos de amor... Respeito e admiro qualquer tipo de crença. A fé nos ajuda a persistir! Acredito que a energia do amor é capaz de transformar tudo! O poder curativo do rosário vem muito mais do amor que recebi da amiga do que objeto ou da bênção de alguém que nem sabe que existo! Guardei o presente na caixinha do carinho.
Tempos depois, com a alma curada, sabendo rir novamente, tornei-me mãe: Helena chegou na minha vida, cheia de luz e alegria! Mais uma maneira de religação com o divino! Nunca ensinei religião à minha filha. A energia divina é presente e intensa nas crianças! As crianças não necessitam da gravidade da palavra! As crianças são a própria essência sagrada!
Quando Helena estava com dois anos, mais ou menos, abriu a caixinha do carinho e encontrou o rosário:
- Mãe, o que é isso?
- É um rosário, meu amor!
- E para que serve?
- Para rezar! - respondi sem me dar conta de que ela não sabia o significado da palavra "reza".
Colocou o rosário em volta da boca e deu uma gargalhada.
- Olha, mãe, eu "risei"!
Caí na gargalhada também! Com todo respeito às diferentes crenças religiosas, mas o Deus dos meus sonhos dá muito mais valor às risadas do que às rezas decoradas!