sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Autorretrato


Arte: Zack Ahern

Em resposta ao 124º Desafio Poético com Imagens de TaniaContreiras Arteterapeuta

sou os escombros de um crime
as marcas deixadas por um serial killer
...
um estilhaço
um bolor
um tumor
...
sou pedra crua
água de enxurrada
...
uma farsa abulante
o fio da meada perdido
...
pretibranca
dura
uma pústula que
vez por outra
entra em erupção
:
do meu ventre vertem
as cores com as quais me tinjo

- Bianca Velloso -


quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Acolhimento



o poeta ejacula sons
poema complexo
palavras esdrúxulas
despetala a fala
arregaça o tempo
e se desfaz em lágrimas
...
não chora poeta
aceita o título
a sina
o túmulo
a rima
...
não chora poeta
aceita o assombro
a arrebatamento
o toque
o outro
...
não chora poeta
aceita o riso
:
gargalhada
tal qual uma farfalla
é uma palavra colorida


- Bianca Velloso -

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Limerique

Meu sonho é tocar na lua
a lua toda nua
será que é dura
linda criatura
tal qual uma índia charrua

- Bianca Velloso -

Helena




Dois grandes olhos castanhos
sempre atentos pra poesia
tímida entre estranhos
em casa tagarela noite e dia

Menina morena voraz leitora
brinca de ser escritora
não sabe definir um soneto
mas já construiu o próprio livreto

Inventa mil brincadeiras
protege plantas e animais
coleciona caveiras

Gosta mesmo de um bom futebol
joga intrépida entre os meninos
depois descansa apreciando o arrebol

- Bianca Velloso -





segunda-feira, 17 de novembro de 2014

adeus

Em resposta ao 123º desafio com imagem de TaniaContreiras Arteterapeuta

Imagem: Chema Madoz

no guarda-roupas
que era nosso
ouço o grito infinito
do teu silêncio
...
nenhum vestido
nenhuma camisola
nenhuma calcinha
nenhum sapato de salto
...
no teto do quarto
há desenhada uma partitura
:
a marcha fúnebre
...
no vazio de mim sigo 
cosendo lágrimas
na vã tentativa
de espantar a solidão

- Bianca Velloso -



sábado, 15 de novembro de 2014

Têmpera

Imagem: pintura de Elia Stergiopoulou

pode tripudiar
tremulo ao vento
mas não tremo
de temor
.
intrepidamente
tempero a vida
com intempéries

- Bianca Velloso -

cabimentos



na praça
a vida resiste
:
olho no olho
passos sem pressa
jogo de dominó
...
tudo aquilo
que já não cabe
na cidade
cabe dentro da praça
:
a praça ainda cabe na cidade

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

avaria



no escuro do quarto
o grito calado
a revirar os olhos
.
estopim
estilhaço
estiagem
espúrias
escombros
...
febre
assombros
delírios
delitos
...
desejo
:
gozo incontido
...
segredos oníricos
passos vazios
segregação
:
a sagração de um poeta

- Bianca Velloso -


quinta-feira, 13 de novembro de 2014

a dita



todos os dias
a morte me invade
num quase estupro
...
está vendo
(?)
esta cicatriz invisível
foi ela quem fez

- Bianca Velloso -

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

filosofia



porque não creio em certezas
também duvido da morte
entrego-me à beleza
só a poesia é meu norte

- Bianca Velloso -

Yume

(para Akira Kurosawa)



sala vazia
sento-me na poltrona
e espero
...
pouco a pouco
atravesso a tela
a lente é a ponte
córnea, cristalino
retina, nervo óptico
até chegar
ao nascedouro do olhar
:
dentro de ti outra tela
pintura habitável

o arco-íris e os pessegueiros em flor
tão volúveis a culpas esculpidas
nas batalhas invisíveis
entre o ser e o humano
...
um homem que atravessa
) todo dia (
o túnel da morte
comandante menino

passos que percorrem
as cores e os traços de Van Gogh

patologia social, explosões atômicas
incandescências na contra-mão da história
o caminhar para um alegre funeral
que sepulta a ciência
e engravida a essência
:
olhar é feito de sonhos
...
e os sonhos de poesia

- Bianca Velloso -

pequena história de terror e amor



endiabrada
menina bonita
travessa que só ela
tem o capeta no corpo
vive noite e dia
a azucrinar a vizinhança

corre à boca pequena
que certa vez seduziu
o motorista do rabecão
e aquele carro frio
incandesceu

desde então
nas noites enluaradas
a cidade inteira uiva
de pavor e de cio

- Bianca Velloso -

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

domingo, 9 de novembro de 2014

o mar


O mar tem Iemanjá
Iemanjá é poeta
O mar é feito de poesia
Se você quer falar com Iemanjá
Não machuque os animais
Vá para a praia
E fale um poema

(Helena Velloso Rodrigues - 6 anos)

Filho derrete a gente


- Agora tu sentas lá no lenço da cegonha. Quero tirar uma foto tua lá, porque foi a cegonha que te trouxe pra mim

- Não foi a cegonha, mãe!

- Não!?!? Como é que foi enttão?

- Fui eu que te escolhi! Antes de nascer, eu tava lá no céu. Tinha várias mães aqui na Terra e eu escolhi tu!

- Mas justo eu? Com tanta mãe legal aqui  na Terra tu foste escolher logo eu, esta mãe chata?

- É que escolhi a mais bonita!

- Ah, meu amor!

- Mãe, mas eu preciso te dizer uma coisa: eu minto quando digo que tu és chata.

terça-feira, 4 de novembro de 2014

azáfama



fecha os olhos
e te entrega
não tenhas medo
o amor é esta urgência
esta dança
esta epifania
que quebra qualquer tabu

- Bianca Velloso -

à espera de Francisco*



vestido branco coração sereno
não era neve era apenas névoa
em silêncio eu te ditava
as notas desta melodia

eu burilava a lua
para exorcizar o medo
e segredava ao ar o meu desejo
de navegar teus beijos

o olhar ausente mergulhado em sóis
não era indiferença nem desdém
era uma valsa de sedução
que escondia as sete cores
só para ver explodir em ti
todo o brilho dos sete mil amores

vem, Francisco, e me resgata o tempo
Francisco
Francisco

- Bianca Velloso -

* Inspirado na música Luiza de Tom Jobim e Chico Buarque

Geni por ela mesma

Arte e fotografia: John Poppleton



a água fria da cachoeira
acende labaredas em mim
saio do rio com fome de amar
amo despudoradamente
homens, mulheres, quem quer que seja
meu sexo é puro
livre de tabus
pleno de vontades
filha do submundo
meu corpo acolhe
aqueles que a sociedade repudia
...
por isso me esculacham
me machucam, me maltratam
dói, mas eu sigo
jamais me enquadro
...
naquele dia chegou o zepelim
e aquele homem asséptico e frio
pronto para aniquilar o povoado
...
quis meu corpo
meu único templo sagrado
.
me fez moeda de troca
.
ajoelharam e me imploraram
...
o cheiro dele me dava náuseas
mas era a minha chance
de salvar a cidade
:
não da destruição
mas do moralismo
...
engoli o nojo
deitei com ele
e acreditei que era heroína
...
mas o dia amanheceu
e nada mudou

- Bianca Velloso -



domingo, 2 de novembro de 2014

rodando a baiana*

Imagem: Óleo sobre tela, da artista plástica Regina Nancy

sou forte, sou guerreira
mãe de santo, filha de iansã
não engulo sapo
nem levo desaforo para casa
pisou na bola comigo, neném
vai sambar miudinho
meu peito a mim pertence
nele só fica quem merece
não fui feita para ficar
à mercê dos seus caprichos

disse que voltava cedo
encheu a cara e ainda por cima
teve a desfaçatez de fazer poema
para os olhos da Cecília

juntei meus badulaques
as cartas, fotografias
meu São Chiquinho
e aquele disco do Noel
que é pra ele não cantar de galo
cantando minha música por aí

parti para ser feliz
que ele encontre um caminho
mas já aviso: rasguei todos os mapas

- Bianca Velloso -

* inspirado na música "A Rita" de Chico Buarque

soul eu

Arte: Abbey Watkins
Em resposta ao 120º Desafio Poético com Imagens de TaniaContreiras Arterapeuta

o tempo me esvai
das mulheres que sou
só permaneço eu no teu olhar
:
quando sou tua
sou nua
sou rua
sou lua
soul eu

- Bianca Velloso -