sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Bolo de Gente Grande

Ontem foi aniversário da Márcia, minha companheira de trabalho na Ótica Helena. Não sei quantos anos ela completou, mas isso também não era importante, o que eu queria mesmo era comprar um bolo e uma vela para cantarmos parabéns.

Passei no mercado com a Helena, ela escolheu um bolo de chocolate. 

- Agora vai lá escolher uma vela para cantarmos parabéns - pedi.

- Mas qual é o número, mãe?

- Ah, não sei... Não sei quantos anos ela está fazendo... Pega um número que tu gostes, um número bonito.

Eu já estava no caixa quando ela chegou com o meu pedido. Veio com duas velas, uma de 9 e outra de 7. 

- Não precisava duas, uma só, filha, coloca a outra de volta lá!

- Mas mãe, bolo de gente grande tem duas velas!

Diante disso não tive mais o que argumentar... A Márcia é que não ficou muito feliz, afinal estávamos comemorando ou seus 97 ou seus 79 anos... Os números não ajudaram muito...

Sobre as perguntas

Helena faz perguntas que levam meu pensamento para lugares nunca antes imaginados. É como se me estendesse sua mão pequenina, e assim me levasse a passear pelos caminhos secretos do universo infantil.

Fernando Pessoa, sob o heterônimo de Alberto Caeiro, escreveu sobre o Menino Jesus:

"A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mãe a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena."

Este Menino Jesus de Alberto Caeiro vive em todas as crianças. É só prestar atenção e deixar o pensamento ir, fluir, fruir...

Helena perguntou-me:

- Mãe, adulto também faz perguntas?

Pergunta difícil! Não soube responder... Disse que sim, mas me pus a pensar... Lógico que adulto pergunta, mas é outro tipo de pergunta! Adulto deixa de perguntar o essencial... Adulto faz pergunta prática, adulto pensa que tem todas as respostas... O grande barato da vida, o que traz felicidade é ter todas as perguntas, é brincar com todas as perguntas, é descobrir respostas só para inventar novas perguntas... Viver inventando perguntas e respostas... E novas perguntas...

Minha filha, me dá tua mão sempre, e me leva a passear pelo teu caminho. Hoje entendo perfeitamente a música do Toquinho:


quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Companheira de escrita

Enquanto escrevo Helena brinca ao meu lado...

Começo a pensar alto: 

- Pequenas doses de felicidade em meio à tempestade... não, não está legal... pequenas doses de felicidade em meio ao furacão... pequenas doses de felicidade em meio ao temporal... o que será que fica melhor, hein? Furacão ou temporal?"

Penso que ela nem está prestando atenção em mim, mas escuto aquela voz de criança me responder:

- Em meio ao temporal fica mais legal!

O que eu posso querer mais de uma filha? Minha companheirona, meu amor! Ela é o tema da maioria dos meus textos, minha poesia cotidiana mais doce... E agora ainda me dá sugestões, me ajuda no exercício da escrita!

- Bianca Velloso - 

domingo, 12 de agosto de 2012

Literatura é terapia

Dentro de um barco sem rumo, no meio de um descaminho, eis que chega Eduardo Galeano com este presente:

A Casa

1984 tinha sido um ano de merda. Antes do infarto, tinham me operado as costas; e Helena tinha perdido um bebê no meio do caminho. Quando Helena perdeu o bebê, a roseira da varanda secou. As outras plantas também morreram, todas, uma atrás da outra, apesar de serem regadas a cada dia.

A casa parecia maldita. E no entanto, Nani e Alfredo Ahuerma tinham passado por lá alguns dias, e ao ir embora tinham escrito no espelho:

'Nesta casa fomos felizes.'

E também nós tínhamos encontrado alegria naquela casa de repente amaldiçoada pelos ventos ruins, e a alegria tinha sabido ser mais poderosa que a dúvida e melhor que a memória, e por isso mesmo aquela casa entristecida, aquela casa barata e feia, num bairro barato e feio, era sagrada.

 E assim, à deriva, o dia transcorreu repleto de pequenas alegrias.

- Bianca Velloso - 

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Do momento em que o sono chega

"Os olhos semicerrados de Lídia seguiam o pensamento vago e indeciso. O fio quebrava-se, havia sombras interpostas como nuvens. Depois, aparecia nítido e claro, para logo se sumir entre véus e surdir mais longe. Era como a ave ferida que rasteja, esvoaça, aparece e desaparece, até cair morta. Incapaz de sustentar o pensamento acima das nuvens que o toldavam, Lídia adormeceu". José Saramago

A forma poética utilizada por Saramago para descrever o momento em que o sono chega, a delicadeza de cada palavra, toda essa preciosidade narrativa remeteu-me de imediato a uma fala da Helena, uma fala simples, com a mesma temática:

- Mãe, quando estou na cama, um pouquinho antes de dormir de verdade, vejo um monte de coisas aqui na frente assim ó... – disse movimentando as mãozinhas em frente aos olhos.

- Ah, é? Que coisas tu vês, filhota?

- Muitas coisas: casas, prédios, nuvens, pessoas... 

Com toda a propriedade intelectual de uma criança de quatro anos, com a poesia iminente da sabedoria infantil, teceu um comentário e me surpreendeu pelo fato de prestar atenção neste momento em que o corpo de desliga da mente. É a poesia que vive e brota nas falas infantis! Um dia ela também vai ler Saramago!

- Bianca Velloso - 

Função da poesia

Há dias em que acordamos encharcados de poesia. É como se, de repente, pudéssemos olhar com olhos de criança: olhos de espanto, de admiração, de contentamento, de contemplação. É mais ou menos assim que se desperta o sonho.

Um raio de sol, um pássaro que canta, o colorido de uma flor no jardim, as ranhuras da casca de uma árvore no meio da cidade, uma ponte, um sorriso, uma criança, uma avó, uma bicicleta... De repente tudo ganha vida, tudo provoca emoção.

Há quem transforme em texto, há quem componha canção e há quem registre na fotografia. Mas a grande maioria das gentes só registra no coração. E assim escreve sua poesia na vida e na alma. Seja nas letras, na melodia, na imagem ou na imaginação, esta é a função da poesia: a desinquietação.

Bianca Velloso
07/08/2012