quinta-feira, 31 de maio de 2018

tímidas intimidades

é preciso silêncio para escutar a voz que conta
é preciso silêncio para escutar a voz da escrita
a vida anda muito barulhenta por aqui
exceto quando a gente sonha
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às vezes necessito de silêncio. de silêncio. quietude. silencio para contar. contar para mim mesma. conto um contar sem números. um contar sem tempo. conto um contar de conto, de quase canto, de quase acalanto. conto com a memória. conto com o sentimento. conto com as palavras que consigo alinhavar. conto sobre as importâncias e as desimportâncias. conto intimidades. tímidas intimidades que não interessam para ninguém a não ser para mim mesma. 

conto para ouvir tua voz. conto para desenhar teus passos: aqueles que não foram, aqueles que poderiam ter sido, aqueles que são - eternas pegadas impressas naquilo que a gente é. conto sobre o encontro entre sonho e realidade (e quem disse que o sonho não é uma realidade? a realidade interna? a realidade ao revés? a realidade da mente? a realidade que a gente sente?) conto sobre o encontro. porque o conto é o caminho. e é através da narrativa que substancio a vida e a morte. filosofia. talvez seja isso: és para mim uma filosofia. filosofia de amor. e o amor nunca mente.
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naquele dia de maio, poucos dias antes do teu aniversário (agora eu sei que é dia 22), tua mãe me encontrou por acaso, me abraçou forte e com os olhos cheios d'água me disse:

- o Ivan quer muito falar contigo.

nos abraçamos novamente, tua mãe e eu, e comemoramos o fato de teres sobrevivido ao acidente, de estares tão bem depois do baita susto que nos deste. disse que te procuraria sim. e logo te procurei. estavas trabalhando na praia, como guia turístico. olhei de longe, estavas muito ocupado. ocupado e feliz. me acenaste com um sorriso (lábios e olhar). segui sem palavras. depois foste tu a me procurar. chegaste em meu consultório. eu estava atendendo, agenda cheia. não conseguimos conversar.

os dias se passaram sem mais notícias nem porquês. dias difíceis, de política intensa e grandes preocupações que nos remetem a um passado tenebroso de torturas imensuráveis e desmedidas privações. até que fui tomar um café na tua casa. foi tua mãe quem me recebeu. tu já não estavas. teu irmão logo apareceu e papo fluía sobre os recentes acontecimentos políticos e sobre a paisagem do teu quintal que está completamente diferente de quando conheci: há agora uma cachoeira de águas quentes e claras. uma cachoeira que deságua na praia. na nossa praia. algumas pessoas se divertiam ali. e era um clima de alegria que nada tinha a ver com toda a tensão desses dias. quando estávamos sentados à mesa, eu na cabeceira, tua mãe à minha direita, teu irmão à minha esquerda, tu apareceste ao meu lado. entre tua mãe e eu. me olhaste nos olhos. profundamente. com olhos tão vivos e tão doces. e mesmo que teus olhos já me dissessem tudo, tua voz foi muito clara:

- muito obrigado por tudo. tu és uma pessoa muito importante para mim.

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continua... assim como a vida. fluxo contínuo. rio que deságua no mar.

Bianca Velloso